Fundamental II

Fundamental II

terça-feira, 31 de agosto de 2010

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Orfeu da Conceição

No dia 25 de setembro de 1956 estreava no Teatro Municipal do Rio de Janeiro a peça Orfeu da Conceição, que transportava para o morro carioca a história do mito grego Orfeu. Era o batismo do carioca, poeta, jornalista, compositor, crítico de jazz, embaixador, “grande amoroso e conhecedor de sua cidade" Vinícius de Moraes como autor e produtor de teatro. Um time de primeira participou de sua montagem e de sua encenação: o arquiteto Oscar Niemeyer assinou os cenários, Lili de Moraes desenhou os figurinos, Leo Jusi dirigiu o espetáculo, o instrumentista Luiz Bonfá deu voz ao violão, Haroldo Costa (Orfeu), Dirce Paiva (Eurídice) e Lea Garcia (Mira) brilhavam no elenco de 45 atores. Mas o que salta nisso tudo é a exposição pública das primeiras composições de Vinicius com o jovem pianista e maestro Antonio Carlos Jobim, como “Se todas fossem iguais a você” e “Lamento no morro”. Dois anos depois, outra obra conjunta, “Chega de saudade”, sintetizaria aquele novo jeito de se fazer música. A peça Orfeu da Conceição ficou em cartaz no Municipal até o dia 30 de setembro de 1956. Dela nasceram o LP de mesmo nome (Odeon, 1956), com vocal de Roberto Paiva, e o filme Orfeu negro, dirigido pelo francês Marcel Camus em 1959, que levou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e a Palma de Ouro em Cannes, além de ter internacionalizado “Manhã de Carnaval”, composição de Luiz Bonfá e de Antonio Maria. Mas isso é outra história... Abaixo, o Gafieiras reproduz os depoimentos dos profissionais que trabalharam em Orfeu da Conceição. Originalmente, eles foram publicados no programa impresso da peça, juntamente com informações biográficas de seus depoentes. Vale a pena sacar as intenções e os medos que cada um deles trazia. LEO JUSISobre a direçãoA maior necessidade da “mise-en-scène” de Orfeu da Conceição era a de evidenciar cenicamente a transplantação do mito grego para o ambiente de um morro carioca, ressaltando ao mesmo tempo o valor sociológico de que senti, seus personagens possuídos. Vinicius de Moraes criou um texto onde vigor e encanto afloram numa poética ora dramática, ora lírica e ainda, por vezes no que poderíamos chamar de liricamente dramática ou dramaticamente lírica. Coube-me, portanto, procurar uma encenação que evidenciasse o lirismo do mito, dando o máximo destaque à dramaticidade do contexto, destaque este usado para prescindir de uma platéia obrigatoriamente referendada à fonte grega. Por outro lado, na autenticidade de seu impulso artístico, o autor não se furtou a conceber cenas e personagens que vão desde o mais cru realismo ao maior simbolismo místico. Optei, assim por um tratamento que veio a conjugar uma interpretação sincera – Stanislavskiana – com uma apresentação Brechtiana, assimiladas pelo temperamento brasileiro. A equipe artística, aos atores, as pessoas da produção que comigo trabalharam para montar este espetáculo, os meus melhores agradecimentos. Que uma palavra final seja, porém, por mim devotada a Vinicius de Moraes, o poeta, o empreendedor, e agora também o homem de teatro. A ele devemos a concretização última deste espetáculo. A ele, diplomata, cineasta e compositor, que dentre suas múltiplas das atividades sempre encontrou tempo para dedicar-se a este empreendimento, aqui ficam o afeto e a admiração de toda a equipe de Orfeu da Conceição.
OSCAR NIEMEYER - Sobre o cenário
Convidado por Vinicius para fazer o cenário de sua peça Orfeu da Conceição, minha primeira atitude foi de recusa, pois nunca trabalhei para teatro e o assunto era, portanto, novo e difícil para mim. Depois, pela insistência do amigo, acabei aceitando a incumbência que, felizmente, em poucos dias transformou-se em atraente preocupação. Ao iniciar os desenhos do cenário de Orfeu da Conceição, deliberei que o faria sem compromissos, atendendo somente às conveniências da marcação das cenas e ao sentido poético de que a peça se reveste. Daí a falta de elementos realistas e a leveza do cenário que visa manter o clima de lirismo e drama, tantas vezes fantástico, que Vinicius criou, e que procura deixar as personagens como que soltas no espaço, inteiramente entregues à fúria de suas paixões. A peça que hoje se apresenta, Orfeu da Conceição, é de grande beleza e poesia. Conta com a dedicação e o talento de companheiros como Leo Jusi, Lila de Moraes, Lina de Luca, Antonio Carlos Jobim, Carlos Scliar e de todos os seus atores e pessoal da produção. Que meu trabalho não a comprometa, é o que desejo.
ANTONIO CARLOS JOBIM - Sobre a música
Das tarefas que meu bom poeta e amigo Vinicius de Moraes me deu, a mais difícil foi por certo esta de dizer alguma coisa sobre a música que compus para Orfeu da Conceição.Não pretendemos uma explicação ou justificação para a música, pois achamos que música não pode ser explicada por palavras. O que podemos fazer é, em termos simples, contar o plano a que obedeceu a partitura dentro do espírito de equipe que nos animou a todos no sentido de harmonizar os elementos que compõem este espetáculo. Apesar da música ter sido feita com o espírito de servir ao texto, lembremo-nos de que Orfeu era essencialmente um músico, e que em certos momentos a sua criação (como no caso dos sambas) deve ter, mesmo servindo ao texto, um sentido próprio, ser "uma coisa em si". Foi com esse espírito que o poeta e eu fizemos os sambas que, na peça, comentam determinadas situações. Quanto aos temas que sublinham a ação, procuramos ser fiéis à idéia que gerou a própria peça e que está toda contida no seu título: Orfeu o músico grego; da Conceição - o músico carioca de morro. Os modos gregos, as cadências plagais, a nossa herança européia, a nossa maneira brasileira foram usados livremente, usados como na própria música que temos, herdeira de diversas culturas e sem quaisquer pretensões de "pureza".O uso livre de "harmonias européias", de "instrumentos europeus", que por sua vez tiveram origem em outras culturas - e ainda, o violão, que o nosso extraordinário Luiz Bonfá comenta em outro lugar deste programa e, mais ainda, toca durante a representação - tudo isso vem da crença que temos de que as culturas se interpenetram e se fundem. O homem evolui e há uma continuidade em toda a cultura humana. Cremos que o mesmo Orfeu que Vinicius colocou no nosso morro poderia ser colocado não importa onde. A valsa "Eurídice", que comenta todo o amor de Orfeu, foi feita ao violão pelo próprio Vinicius, que além de ser o poeta que todos conhecem, é um homem de rara musicalidade. Serviu ela como ponto de partida para a "ouverture". Nesta, que é um comentário musical da peça, usamos somente os principais temas que despontam no decorrer da ação, de modo a evitar que esta se tornasse uma colcha-de-retalhos. E após esta breve explicação, que podemos mais dizer, nós que, sobretudo, não sabemos nada?
LILA DE MORAES- Sobre os figurinos
A idéia de fazer os figurinos de Orfeu da Conceição foi, de certo modo, audaciosa por ser a primeira vez que me confiaram uma tarefa desse gênero. Mas o que efetivamente forçou um resultado foi o sentimento de que eu poderia fazer alguma coisa no sentido de contribuir para um melhor entendimento da peça. Todos os meus esforços dirigiram-se, assim, no sentido de transmitir a integração de mito grego no morro carioca, insinuando as características mais marcantes das personagens e buscando uma harmonia talvez não realisticamente evidente mas que o fosse de um modo poético. Para alguns dos tipos principais, como Clio, por exemplo, procuramos obedecer mais fielmente nela a figura trágica da mãe grega, transposta numa estilização que lembrasse também, em sua forma, a linha negra dos trajes da velha Bahia dos escravos. Já Apolo, o pai de Orfeu, representou a figura mais simples de homem de morro, de certo modo o poeta nunca realizado, mas que guarda bem fundo a sua doçura e simplicidade. Eurídice é, antes de tudo, a mulher ideal, na qual o homem plasma o seu sonho e a sua fantasia e que existe de modo mais subjetivo, como a encarnação mesma da mulher amada. Na escolha das cores das personagens procuramos sublinhar o mais fielmente possível a linha dramática de cada figura: algumas trágicas e intensas como no caso do vermelho de Mira; outras luminosas e puras como acontece com o azul de Orfeu. Mas o que realmente constituiu a nossa principal finalidade, foi trabalhar os figurinos do modo a que servissem, antes de tudo, ao texto do autor.
LINA DE LUCA- Sobre a coreografia
O convite de Vinicius de Moraes para que eu me encarregasse da coreografia de Orfeu da Conceição, desvaneceu-me sobremodo. Considerei-me altamente distinguida com essa perspectiva de cooperar, dentro de minha possibilidades, num empreendimento que me parece de suam importância, no atual momento teatral brasileiro, pois diretrizes que nos conduzirão ao aproveitamento de forças e meios de expressão artística até agora pouco empregados, ou melhor, quase ignorados. O convite de Vinicius colocava-me ao lado de companheiros de trabalho do quilate de Leo Jusi, Lila de Moraes, Antônio Carlos Jobim e Oscar Niemeyer, o que muito me lisonjeou. Mas, além de todas essas ótimas perspectivas de trabalho sério e inteligente que me oferecia, o convite encerrava magnífica surpresa que só o início dos ensaios me revelou: o prazer, o entusiasmo de trabalhar um elenco negro. Que maleabilidade, que plasticidade, que senso de ritmo e instinto musical possui a nossa gente de cor! Admira-me que, com semelhante material, não tenhamos, ainda, grandes companhias de ballet, de teatro, tanto falado como cantado, formadas por elencos mistos ou integralmente negros. Parece-me que essa falha se deve, talvez e apenas, à falta dum impulso inicial bem orientado, pois o meu convívio, no trabalho, com o elenco da peça de Vinicius, não me permite duvidar de que os nossos negros, se o quiserem, se possam equiparar aos norte-americanos, quando não sobrepujá-los. Um amigo contou-me que Jouvet, em sua primeira estada no Rio, estranhara estarem os negros tão à margem das manifestações teatrais nesta cidade, pois os considerava atores natos, por havê-los admirado em puro transe teatral, nas escolas de samba e nos ranchos que vira durante o carnaval. Compreendo, perfeitamente, a estranheza do grande ator e diretor, e estou convencida de que nos negros do Brasil jaz uma imensa inexplorada força artística. E, para terminar, torno público o entusiasmo, a satisfação que experimentei ao trabalhar o elenco da peça de Vinícius, e faço votos de que Orfeu da Conceição seja a faísca provocadora da explosão que há de trazer à luz do dia a riqueza artística que dorme em nossos irmãos negros.
LUIZ BONFÁ- Sobre a parte do violão
Ao ser convidado para solista de violão de Orfeu da Conceição por Vinicius de Moraes – o nosso caro poeta e autor da história do Orfeu Negro e ainda do temo romântico, a valsa “Eurídice”, que é uma obra talhada para o violão – e por Antonio Carlos Jobim – o compositor talentoso e moderno que musicou o orquestrou a peça – não houve como não aceitar. Depois de ler Orfeu da Conceição e sentir o violão como um elemento fundamental da tragédia, vi que por mais exigente que fosse o violonista o seu papel era dizer sim à incumbência. Isso porque, mais uma vez, esse instrumento que se originou aí pelos fins do século VIII no Oriente, como a harpa e o alaúde, sendo levado à Espanha pelos árabes, que para alguns é um instrumento de pálidos recursos, tem à sua frente, em Orfeu da Conceição, um trabalho de alta significação e beleza, tendo sido jogado na orquestra por Antonio Carlos Jobim com rara felicidade e maestria – o que prova ser o violão um instrumento solista por natureza
Dificuldades: O violão, com suas seis cordas, seus trastes metálico que golpeiam rispidamente as vibrações daquelas, sua pequena caixa de ressonância, a dificuldade da sua afinação, se transforma, engrandece e eleva por isso que adquire a suavidade da harpa e a doçura do celente nos acordes cheios. Essa reduzida caixa geme e canta, como se compreendesse a tristeza e a alegria de todos os povos. Modo: Os sons, a meu ver, devem sair do violão como por encanto, sem o menor esforço, sem dificuldade. Só assim se conseguirá uma verdadeira sonoridade, uma maior soma de valores e de beleza. Em Orfeu da Conceição, o violão pode fazer milagres. É realmente parte integrante de Orfeu. Na “Ouverture” ele sola a valsa “Eurídice”, tema romântico da peça, e no decorrer da peça sola também as introduções dos sambas e os tristes acordes com que Orfeu procura manifestar a dor e os conflitos que lhe vão no íntimo. Clássico: Nas transcrições de obras clássicas tem-se obtido os melhores efeitos no violão. Fica longe de desmerecer do original. Nesse gênero ele tem a riqueza própria de um quarteto de cordas. Popular: No terreno das canções populares o violão é insubstituível, quer n acompanhamento de modinhas, quer nos solos e introduções para os demais gêneros. Em resumo, em Orfeu da Conceição o violão é o Senhor Violão: é o Senhor Violão de Orfeu da Conceição.
CARLOS SCLIAR- Sobre o aspecto plástico
Fui o último elemento integrado ao grupo que realiza a primeira apresentação de Orfeu da Conceição. Há tempos o teatro me interessava. O momento teatral no Brasil – com várias companhias organizadas à base de grupos fixos, boas direções, repertório selecionado e uma concepção de espetáculo em equilíbrio com o que mais sério se realiza em toda parte – mostra, a meu ver, o teatro como um campo de campo de ação propício às mais avançadas ideações, sendo necessário e urgente integrar a temática nacional no concerto geral. Entusiasta do “Orfeu”, certo de que a peça representa um passo decisivo no teatro brasileiro, foi, no entanto, com relutância, que aceitei o cargo de consultor plástico do produtor, na convicção de que sem um conhecimento prático, as melhores idéias ficam só nas intenções. Mas a equipe era excepcional e a tentação foi maior que o bom sendo medroso. Com exceção de Leo Jusi, os demais elementos do grupo participavam como estreantes de uma organização teatral profissional. Niemeyer, Antônio Carlos Jobim, Lila e Vinicius de Moraes, Lina de Luca e eu trabalhando pela primeira vez na montagem de uma peça - nada mais natural que muitas idéias e práticas estranhas ao teatro aparecessem no processo do trabalho. Mas o entusiasmo geral pela peça criou um clima de ousadia e apresentou soluções que, se não necessariamente novas, eram as que mais correspondiam à vontade de realizar um espetáculo despojado como um oratório em ritmo de samba, simples como um pedaço de pão e limpo como uma cor precisa. Seria difícil dizer quem, na equipe , primeiro imaginou uma cor, um detalhe; mas para se chegar ao resultado burilado levou-se em consideração não só o espetáculo plástico mas principalmente a importância dramática da peça, sua clareza e integração no meio em que nascida.Niemeyer criou um cenário no qual a peça se encontra na sua mais intensa simplicidade. A direção procurou tirar o melhor partido das cores e da luz, funcionando no ambiente sugerido pelas rubricas do autor. Tudo o que pensávamos, integrava-se , na hora do trabalho, na preocupação coletiva da equipe de apresentar uma peça que chegasse ao público numa mensagem mais pura e direta. Na verdade, o espetáculo foi realizado no sentido de se chegar a uma síntese que transmitisse uma atmosfera grega; menos, porém, na lembrança da arte clássica da Grécia do que nobreza tão natural nos elementos do povo – simples e direto – carregados de um conteúdo real poético.

O mito Orfeu

Orfeu teve desgraçado fim. Depois da expedição à Cólchida, fixou-se na Trácia e ali uniu-se à bela ninfa Eurídice. Um dia, como fugisse Eurídice à perseguição amorosa do pastor Aristeu, não viu uma serpente oculta na espessura da relva, e por ela foi picada. Eurídice morreu em consequência, e desde então Orfeu procurou em vão consolar sua pena enchendo as montanhas da Trácia com os sons da lira que lhe dera Apolo. Mas nada podia mitigar-lhe a dor e a lembrança de Eurídice perseguia-o em tôdas as horas.

Não podendo viver sem ela, resolveu ir buscá-la nas sombrias paragens onde habitam os corações que não se enterneceram com os rogos humanos. Aos acentos melódicos de sua lira, os espectros dos que vivem sem luz acorreram para ouvi-lo, e o escutavam silenciosos como pássaros dentro da noite. As serpentes, que formam a cabeleira das intratáveis Eríneas, deixaram de silvar e o Cérbero aquietou o abismo de suas três bocas. Abordando finalmente o inexorável Rei das Sombras, Orfeu dêle obteve o favor de retornar com Eurídice ao Sol. Porém seu rôgo só foi atendido com a condição de que não olhasse para trás a ver se sua amada o seguia. Mas no justo instante em que iam ambos respirar o claro dia, a inquietude do amor perturbou o infeliz amante. Impaciente de ver Eurídice, Orfeu voltou-se, e com um só olhar que lhe dirigiu perdeu-a para sempre.
As Bacantes, ofendidas com a fidelidade de Orfeu à amada desaparecida, a quem ele busca perdido em soluços de saudade, e vendo-se desdenhadas, atiraram-se contra êle numa noite santa e esquartejaram o seu corpo. Mas as Musas, a quem o músico tão fielmente servira, recolheram seus despojos e os sepultaram ao pé do Olimpo. Sua cabeça e sua lira, que haviam sido atiradas ao rio, a correnteza jogou-as na praia da Ilha de Lesbos, de onde foram piedosamente recolhidas e guardadas.

Fonte: Vinicius de Moraes: 'Orfeu da Conceição', Livraria S. José, Rio, 1960